sexta-feira, 15 de agosto de 2014

“Meu avô morreu quando eu tinha oito anos.


Desde então, nada de interessante aconteceu na minha vida”. Esta é a frase mais famosa do Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, ou simplesmente Gabo, como era chamado pelos amigos. O avô lhe contava histórias do povoado de Aracataca, criado pela United Fruit, na zona bananeira da Colômbia. Aracataca conheceu seu apogeu e, depois que a empresa foi embora, ficou abandonada à miséria e ao esquecimento, como tantos povoados da América Latina. As histórias narradas pelo avô seriam a matéria para uma obra reconhecida pelo público e pela crítica como uma das mais criativas da história da literatura castelhana. As experiências da infância que moldam a vida e a obra são relatadas por vários escritores. Manuel Bandeira, em seu ITINERÁRIO DE PASÁRGADA, lembra que suas experiências até os seis anos de idade constituíram a matéria de toda a sua poesia. E Simone de Beauvoir afirma, em suas MEMÓRIAS DE UMA MOÇA BEM COMPORTADA: “Prometi para mim mesma nunca esquecer que com cinco anos somos um indivíduo completo”. Aracataca está situada na Costa do Caribe e é uma das regiões mais multiculturais do planeta, tendo atraído imigrantes de todas as partes do mundo. O próprio García Márquez recordaria, muitos anos depois, ao visitar Angola, que não encontrara novidade alguma, que a África estava toda no Caribe. “No Mar das Antilhas, ao qual pertenço, misturou-se a imaginação transbordante dos escravos negros africanos com a dos nativos pré-colombianos e depois com a fantasia dos andaluzes e com o culto dos galegos pelo sobrenatural. Essa aptidão para ver a realidade de certa maneira mágica é própria do Mar das Antilhas e do Brasil”. O povoado em que passou a infância se tornou, assim, o grande cenário de seus contos e romances. A transfiguração mais conhecida é Macondo, a Aracataca de CEM ANOS DE SOLIDÃO e mais meia dúzia de outras narrativas. O REALISMO MÁGICO COMO INVENÇÃO LATINO-AMERICANA Esse mundo pobre, modorrento e sequestrado economicamente por várias companhias norte-americanas, no processo criativo do escritor, se abriu para a imaginação e, aos elementos da realidade concreta, vieram somar-se os voos livres da inventividade. Importante lembrar que García Márquez sempre insistiu na imaginação, porém como elemento transfigurador calcado na realidade. A imaginação, na sua concepção, é apenas um instrumento de elaboração da realidade. “Não há uma linha em toda a minha obra que não se fundamente na realidade”, costumava dizer. Dessa tensão entre a realidade e a imaginação nasceu o chamado realismo mágico, criação original da literatura latino-americana e que representou o chamado “boom” dos escritores hispânicos nos anos 50-60, projetando as letras da América Latina no cenário mundial. García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luis Borges e tantos outros garantiram um lugar definitivo para a literatura hispânica no século XX, arrancando-a da condição de uma literatura periférica. O realismo mágico é mais que invenção. É uma expressão que exterioriza e problematiza a própria realidade da América Latina. Nas entrevistas concedidas a Plinio Apuleyo Mendoza e reunidas no volume CHEIRO DE GOIABA, o escritor colombiano cita o explorador norte-americano F. W. Up. de Graff, que, percorrendo a Amazônia no final do século XIX, registrou coisas inusitadas, como um arroio de água fervente e “um lugar onde a voz humana provocava chuvas torrenciais”. Registra também que em Comodoro Rivadavia, no extremo sul da Argentina, os ventos carregaram um circo inteiro e no dia seguinte pescadores retiraram de suas redes leões e girafas. Nessa ordem de ideias, as experiências incríveis vividas pelos personagens de CEM ANOS DE SOLIDÃO não se afiguram como necessariamente da ordem da ficção. O realismo mágico é, na verdade, uma categoria mais ampla para retratar a América Latina. Mais ampla em relação a quê? Ao cartesianismo europeu imposto pelo colonizador e que procura elencar e explicar a realidade concreta nos moldes da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert ou da tabela periódica de Linus Pauling. Aliás, no romance experimental CATATAU, o escritor Paulo Leminski problematiza muito bem os limites da racionalidade europeia. Nele, acompanhamos o desconcerto do filósofo francês Renés Descartes (pai do cartesianismo), jogado em pleno Recife da invasão holandesa. As classificações (zoológicas, botânicas e minerais), as categorizações, as certezas do cogito vão caindo por terra uma a uma. A começar pela própria exuberância da fauna e flora tropicais, que parecem desafiar qualquer possibilidade de submetê-las à análise racional, bem como de estarem ao alcance de uma humana compreensão. Em outras palavras, a natureza domina o homem e apresenta fenômenos que desafiam a ciência. Essa questão também é abordada num grande filme peruano intitulado MARIPOSA NEGRA. A imaginação se torna, assim, um complemento de uma realidade extremamente complexa, não apenas em termos de natureza, mas também em sua significação alegórica, das particularidades e complexidades políticas do continente. A título ilustrativo, enumeremos alguns dados reais mas que parecem tirados da mais pura ficção. A América Latina é um continente no qual se exterminou sistematicamente quase todos os índios. Na Argentina, por exemplo, na segunda metade do XIX, acreditando-se na melhoria da “raça” por meio de um progressivo branqueamento da população, o governo organizou caravanas que se espalharam por todo o país encarregadas de exterminar, a tiros certeiros de rifles, toda a população indígena, objetivo alcançado com sucesso. Na Bolívia existe a mina de Potosí, explorada há quatrocentos anos. Hoje explora-se estanho e outros minérios; no passado, explorou-se a prata. Considerando-se a quantidade de prata extraída da mina, seria possível, segundo estatísticas, construir uma ponte de prata ligando Potosí à Espanha. Mais: o número de mineiros mortos em acidentes na mina ao longo desses quatro séculos permitiria que seus ossos, enfileirados, também estendessem uma ponte entre a Bolívia e a Europa. E o que dizer do Brasil, um país cuja história econômica se construiu com o transplante de milhões de negros do continente africano para servirem de mão-de-obra nas lavouras e minas? O realismo mágico apoia-se, portanto, na realidade concreta e não deve ser confundido com fantasia, isto é, a invenção pura e simples, à la Walt Disney, que é uma bobagem artificial sem qualquer vínculo com a realidade. Aliás, qualquer criança, quando se torna mais consciente e começa a aguçar sua percepção artística, não consegue se interessar pelo mundo boboca de Walt Disney. ESCRITOR DE UM ÚNICO TEMA A obra de Gabo é, numa primeira mirada, polivalente. Há os grandes romances, como CEM ANOS DE SOLIDÃO, O OUTONO DO PATRIARCA e O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Há os contos que esbanjam imaginação, como os de A INCRÍVEL E TRISTE HISTÓRIA DA CÂNDIDA ERÊNDIRA E SUA AVÓ DESALMADA. Existem os relatos-reportagem baseados em fatos reais e que prendem o leitor da primeira à última palavra do texto, como o RELATO DE UM NÁUFRAGO, a CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA ou A AVENTURA DE MIGUEL LITTÍN CLANDESTINO NO CHILE. Some-se a isso a riquíssima obra jornalística e a espetacular autobiografia VIVER PARA CONTAR, da qual o leitor não consegue desprender-se até chegar à derradeira página. Em meio à diversidade, um denominador comum. O escritor colombiano insistia que, no fundo, todo escritor escreve um único livro. Por trás do luxo da variedade dos gêneros e das formas, da diferença dos enredos e dos personagens, bem como dos pontos de vista dos diferentes narradores, haveria, sempre, em última instância, um tema maior. A obra seria, então, uma variação sobre o mesmo tema. Alguns casos clássicos na história da literatura a ilustrarem essa tese são, por exemplo, o tema da memória em Proust, o do tempo em Virginia Woolf, o do que poderíamos chamar de um manifesto contra a estupidez humana em Machado de Assis, a criação de mundos fictícios capazes de criar uma realidade mais real que a estreita e mesquinha realidade que nos circunda, como encontramos em Cervantes e Flaubert. E qual seria o tema subjacente à obra de García Márquez? A solidão. Em CEM ANOS DE SOLIDÃO, os personagens entregam-se a todo tipo de experiências. Úrsula come terra (criação inspirada numa irmã do escritor que, de fato, quando criança, comia terra), os ciganos ganham dinheiro apresentando aos estupefatos moradores de Macondo o gelo e o imã, os Buendía comem com requintes pantagruélicos e reproduzem-se desenfreadamente, tudo acontece de modo superlativo. Mas, curiosamente, os seres que habitam Macondo parecem incapazes de amar. Dessa ausência de amor e solidariedade nasce a solidão que paira sobre tudo e todos. - See more at: http://cpv.com.br/blog/index.php/uma-rosa-amarela-para-gabo-gabriel-garcia-marquez/#sthash.3YTaGXtY.dpuf